
Após a cena final percebo que apenas metade da sala se levantara. Quando as luzes se acendem olho para o meu lado direito na distância de umas 6 poltronas,, um rapaz com seus vinte e poucos anos com os braços apoiados na poltrona da frente olha para o infinito, onde deveria estar seus pensamentos. Assim como eu, que demorei alguns minutos para soltar uma palavra sobre qualquer coisa para minha namorada que estava visivelmente emocionada. Meu irmão, que assistiu o filme em outro cinema, me disse que a maioria das pessoas esperou os créditos terminarem para se retirarem da sala, coisa que faço em quase todos os filmes e sei que pouca gente tem esse costume.
"Ensaio sobre a cegueira" não é um filme que agradará a todos, mas, a poética impactante não permite que ninguém saia do cinema da mesma maneira que entrou. Meirelles, orgulho nacional, novamente mostra que é um dos melhores diretores da atualidade, ao lado de Tarantino, Guillermo del Toro (Labirinto do Fauno), Guy Ritchie (Snatch - Porcos e Diamantes), entre outros. Com maestria ele traz para as telas a adaptação quase perfeita do livro homônimo de José Saramago, ganhador do prêmio Nobel de literatura.
Na metáfora criada por Saramago, uma estranha epidemia de cegueira branca toma conta de um país. A fotografia de César Charlone traz esse branco para a trama de uma forma impressionante. Os tons pálidos das cenas enriquecem a película, e ajudam a ambientar a agonia que a história transmite. Ainda tecnicamente falando, o som está em todos os detalhes numa ligação direta com os cegos que devido tantas dificuldades, acabam apurando outros sentindos. A riqueza de sons em várias camadas e muito bem distribuídos, intensifica as sensações para o espectador. A emoção do filme é tão forte que a trilha passa suave e quase despercebida, pois a própria história já é suficientemente intensa e tocante.
Os aplausos para Meirelles continuam pelas dificuldades que a adaptação para outra linguagem têm. Após o final você saberia dizer qual o nome da personagem de Juliane Moore? Ou do médico interpretado por Mark Buffalo? A mulher de óculos (Alice Braga), o homem com o tapa olho (Dany Glover) ou o líder dos cegos da Ala 3 (Gael Garcia Bernal)? Também tenho certeza que ninguém lembrará, pois Saramago não dá nome ao país, nem a cidade e a nenhum personagem.
Juliane Moore, que faz o papel da mulher do médico, a única que não fica cega, é o pivô principal de toda a trama. Como em toda epidemia, os primeiros infectados são isolados num antigo sanatório, divido em alas. O medo de contágio transforma o isolamento em uma campo de concentração de cegos, onde o seres humanos acabam por vivenciar o limite da civilidade. Imagine pessoas que acabaram de ficar cegas, soltas a deriva num lugar desconhecido sem ninguém que enxergue para ajudar, pois bem, Saramago imaginou e Meirelles mostrou a que níveis o ser humano pode descer.
Mas, todo o incômodo dos fatos lamentáveis que ocorrem, - e confesso que na cena mais forte do filme me senti emocionado com um belo nó na garganta -, não dimensiona a metáfora que "Ensaio" possui e por isso, merece várias análises. Impressiona a riqueza interpretativa e as várias leituras possíveis que os fatos mostrados podem ter. Todos os personagens exercem funções distintas e por isso podem ser analisados separadamente.
"Ensaio" pode até não levar nenhum oscar, ou mesmo ser um fracasso de público, mas, a intensidade dessa obra para o espectador mais atento sempre receberá os status de direito. E na seqüência final, onde novamente fiquei emocionado, a assinatura escrita a quatro mãos por Meirelles e Saramago mostra que vivemos cegos para a vida, e que a epidemia branca é muito mais real do que imaginamos.
Gostinho especial
O tempero para os brasileiros e principalmente para os paulistanos é ver que a cidade de São Paulo foi utilizada como cenário, e pela primeira vez incorporou um "personagem" em um filme com alcance mundial, apesar de não representar São Paulo, mas sim a cidade imaginada por Saramago e criada por Meirelles. Já vimos Nova York, Los Angeles, Paris, Londres e agora a nossa cidade mostra que pode ser um palco cinematográfico digno de grandes produções.
J. Barish
A declaração emocionada de Saramago para Fernando Meirelles,
nem precisa de comentários!